Favaretto & Schmidt
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A Crise dos Especialistas

- Eu já disse, você deveria procurar um especialista.

- Mas por que você ainda não foi em um especialista?

- Só um especialista pode resolver o seu problema.

O ato de caminhar é um desequilíbrio momentâneo de um passo para a direita seguido da aproximação ao centro e de outro desequilíbrio do passo para a esquerda. Uma pessoa adulta caminha em um movimento ritmado que, se fosse realizado muito lentamente, poderia derrubá-la. O exemplo de andar de bicicleta é semelhante: se você andar muito devagar não será possível alcançar equilíbrio. É o fluxo do movimento em um determinado ritmo que permite avançar.

A busca incessante pela especialização reflete bem a tendência do nosso tempo. Todas as soluções para os problemas mais variados repousam sobre os ombros de algumas pessoas que se debruçaram sobre nichos do conhecimento. Mas não seria isso um desequilíbrio momentâneo prestes a ser corrigido pelo próximo passo na caminhada? Creio que sim e isso é especialmente verdadeiro no mundo do direito.

O desequilíbrio que tenho visto nos profissionais especialistas (não me leve a mal, eu também fiz uma especialização) diz respeito ao enclausuramento no mundo da sua especialidade.  Não há nada de errado em adotar essa linha de trabalho, todavia, é necessário compreender que muitos especialistas escolheram limitar sua visão global em prol de um intenso foco. O especialista enxerga os problemas com lente de microscópio e essa habilidade permite trazer soluções excelentes para problemas específicos.

Diante da habilidade desenvolvida é comum que o especialista atraia para si grande quantidade de casos idênticos, utilizando a mesma estratégia bem sucedida para solução de todos eles. A sua vantagem, no entanto, é também seu calcanhar de Aquiles: o fato de resolver muitas ações repetitivas gera o vício de enxergar todas as causas com a mesma lente de microscópio. O profissional sente-se atraído para o conforto do seu “laboratório” particular onde todos os problemas são os mesmos e as soluções iguais. Trata-se de um ambiente de risco controlado onde não é mais preciso desgaste mental, a mera repetição do roteiro vencedor é suficiente.

Mas qual o problema disso? O especialista não sabe resolver suas demandas específicas? Ele não irá utilizar um roteiro vencedor? Não há problema algum nas soluções adotadas pelos especialistas na grande maioria dos casos; possivelmente ele terá sucesso em todas as demandas repetitivas. A questão é: - Você já perguntou para o seu problema se ele é do tamanho do nicho do especialista? Creio que não. Saiba de antemão que os problemas complexos não respeitam os nichos mas são especialistas em ignorá-los. Como reagirá o profissional especialista quando o problema transbordar a sua especialidade? Ele saberá apresentar uma solução que não seja o roteiro vencedor da demanda repetitiva?

O comportamento padrão que tenho percebido não indica isso. Pelo contrário, muitos especialistas são levados a escolher o caminho onde há menor esforço e tentam colocar o problema dentro da caixa do roteiro vencedor (ainda que o problema seja muito maior que essa “caixa”).

Não é necessária muita imaginação para identificar os erros dessa abordagem. A parte do problema que não couber na caixa não será resolvida e os efeitos adversos surgirão assim que o paciente notar os primeiros sintomas. Pode ser que esses sintomas surjam imediatamente ou pode ser que levem alguns anos; esta segunda opção é mais frequente no ramo do direito onde as causas demoram muito para ser julgadas. A demora, nesse caso, é um fator que ajuda a encobrir o erro da estratégia escolhida no enfrentamento do problema. Quando o erro vier à luz o cliente descobrirá que além de não obter a solução esperada, ele perdeu muito tempo sem saber dos equívocos da solução adotada pelo especialista.

Para ilustrar esse ponto nada melhor que comparar o problema jurídico com uma doença. Imagine que um paciente vá ao médico oftalmologista com dor nos olhos. O médico, que já se deparou com milhares de situações semelhantes, solicita os exames de rotina para investigar o problema e apresenta o tratamento mais comum e eficaz para esse sintoma. Digamos que a dor diminua mas não seja resolvida. Dependendo da postura do paciente, esse sintoma pode permanecer muito tempo com um tratamento ineficaz até que em algum momento se descubra, por exemplo, que a origem do problema era neurológica, como por exemplo um tumor cerebral. O tempo perdido pelo paciente pode significar a perda da melhor janela de oportunidade para enfrentamento de uma doença tão agressiva.

Quando o profissional do direito está diante de problemas complexos, a perda de tempo também resulta na redução drástica de oportunidades. Inúmeras vezes recebi clientes que já tinham deixado transcorrer o prazo para defesa administrativa quando essa defesa poderia ser importante instrumento de combate. Em outras ocasiões a vítima sofreu lesão ao seu direito e foi orientada pelo “especialista” a ajuizar ação ordinária antes de qualquer tentativa administrativa. Existem os casos em que o especialista sugere propor uma ação ordinária quando deveria ter ajuizado mandado de segurança. Além dessas questões de mera natureza procedimental, a solução de problemas complexos costuma envolver ramos diferentes do direito, o que por vezes torna inútil depositar todas as esperanças na reputação de um profissional especialista de determinado nicho.

A soma de experiências diversificadas de um profissional e o seu interesse por diversas áreas do conhecimento é que lhe qualificam para apresentar soluções para questões complexas. É esse profissional que não ficou enclausurado apenas numa área de conhecimento resolvendo questões repetitivas, que poderá apresentar soluções “fora da caixa”, ou seja, aquelas saídas que nenhum outro especialista enxergou fazendo uso das suas lentes de microscópio.

É preciso, no entanto, fazer uma ressalva. Os profissionais especialistas foram a resposta necessária para determinado tempo nessa jornada do homem em busca do conhecimento. Eles ganharam espaço e reputação justamente porque os “generalistas” não eram capazes de resolver todas as demandas de modo rápido, eficaz e padronizado. Graças aos especialistas tivemos grandes avanços em várias áreas.

Entretanto, como escrevi no início, a caminhada é um desequilíbrio constante e ritmado que se traduz em equilíbrio. Se permanecermos muito mais tempo inclinados sobre a perna da especialidade como solução para todos os problemas do mundo, cairemos ao chão. Se cairmos, será preciso esforço redobrado para que sejamos reconduzidos a um lugar de equilíbrio. A necessidade do nosso tempo é conciliar a capacidade de foco sem abrir mão da visão ampla. O foco tem o seu custo mas a futura geração de profissionais não pode jamais perder a visão do todo. Se ela o fizer reduzirá sua inteligência e capacidade de compreensão dos problemas; como consequência lógica, as soluções também serão limitadas.

Não quero dizer com isso que os especialistas estão com os dias contados pois sempre haverá demanda para bons profissionais capazes de solucionar situações específicas. É o paradigma de depositar todas as soluções do mundo sobre os ombros dos especialistas que exige mudança, pois os problemas complexos não respeitam os nichos. Adotar uma visão holística é uma necessidade não só do direito mas também da medicina, que vem experimentando a mesma crise resultante da excessiva especialização. Segmentar o conhecimento é útil, valioso e desejável, desde que seus profissionais permaneçam atentos à visão do todo.

 

Cícero Antônio Favaretto